11 março 2007

"pincéis e facas"


Considerado como um dos principais teóricos do movimento surrealista e dono de um respeitável trabalho crítico e poético relacionado às artes-plásticas, o francês André Breton parece ter se precipitado ao definir a produção artística de Frida Kahlo como “surrealista”. A resposta da pintora mexicana veio logo em seguida, revelando o quão reais eram as temáticas de suas obras. Paradigmas estéticos à parte, basicamente essa peculiar realidade é um dos principais elementos que transbordam na peça “Pincéis e Facas” dirigida por Paulo Biscaia Filho.

Realidade. Por mais fantasiosas e “surreais” (por que não, caro Breton?) que fossem as pinceladas de Kahlo, com cenários inimagináveis e personagens únicos, tinham inspirações em histórias reais com pessoas de verdade. “Pincéis e Facas” é baseada em indivíduos presentes em três obras da pintora, “O Suicídio de Dorothy Hale”, “Cristina Minha Irmã” e o destaque da montagem “Unos Cuantos Piquetitos”, que servem como representantes de um possível cotidiano mexicano e nova-iorquino, unidos apesar da distância geográfica, social e política. O enredo conta com dois elos para conduzir estas realidades simultâneas; o famoso feriado “Dia dos Mortos”, comemorado em 2 de novembro no México, e a personalidade marcante de Frida tanto na arte quanto na vida pessoal.

A primeira história retrata o nascimento e morte do caso extraconjugal que o pintor e muralista Diego Rivera, marido de Frida, teve com sua cunhada, Cristina Kahlo. Temas como a relação da pintora com a arte, política, estado de saúde e o casamento, são discutidos entre tímidos flertes e insinuações sensuais dos futuros amantes. O público também tem chance de conhecer os últimos dias de vida da nova-iorquina Dorothy Hale, uma espécie de “nova-rica” e candidata a atriz e dançarina que não suportou viver sem o marido, e se atirou de um prédio.

A terceira passagem é a história do jovem amolador de facas Jesus, que vivia às magoas da morte de sua esposa (associada a uma importante passagem na vida de Frida), e acaba acidentalmente envolvido com um casal no ápice da crise emocional. O marido era um cristão ferrenho envolvido com lutas populares mexicanas que havia “adotado” sua atual esposa e se negava a conhecer o passado da mulher. Quando descobre sua história, ao mesmo tempo em que tem atingida a memória de seu pai, protagoniza a cena do quadro “Unos Cuantos Piquetitos”, e uma quarta história começa a se desenvolver.

O “Dia dos Mortos” associado a esses casos de extremo descontrole entre homens e mulheres, revela como as pessoas abdicam de suas vidas para relembrar a memória dos falecidos, ou negá-las. Não importa. O que marca é a forte presença dos espíritos como se realmente estivessem vivos e felizes, seja na memória ou em aparições, dando o contraponto com os personagens de carne e osso da montagem. Parecem todos mortos, a não ser pelo coração que insiste em bater e transparecer sentimentos. Com a mesma intensidade está presente a personalidade de Frida, e suas principais passagens na vida. Como o tempo em que passou em Nova York, o acidente na adolescência e sua alegria com festas populares.


“Pincéis e Facas” concorre em algumas categorias no Troféu Gralha Azul que faz parte do circuito de eventos alternativos do Festival de Teatro de Curitiba deste ano, e teve o fim de sua temporada no último domingo (25). Mesmo com as mais diversas adaptações feitas sobre a vida de Frida Kahlo (que já ganhou desde produção hollywoodiana, até história em quadrinhos italiana), a peça tem importante papel na manutenção da memória da pintora mexicana. Iguala diferentes realidades para justificar os fins da utilização dos pincéis e das facas, sempre buscando a libertação da alma.